O Lobo da Estepe vivia, segundo seu próprio entendimento, inteiramente à margem do mundo convencional, pois não conhecera nem a vida de família nem as ambições sociais. Sentia-se isolado ora como um esquisitão e doentio eremita, ora como um indivíduo superiormente dotado, que por seu gênio se sobressaía do comum dos mortais. Desprezava conscientemente a burguesia e vivia orgulhoso de não pertencer a ela. Contudo, sob muitos aspectos, vivia inteiramente como burguês, tinha dinheiro no banco, ajudava alguns parentes pobres, vestia-se sem cuidados particulares mas de maneira decente e sem chamar a atenção; procurava viver em paz com a polícia, os coletores de impostos e outros poderes semelhantes. Mas além disso sentia forte e secreta atração pela vida burguesa, pelas tranqüilas e decentes residências familiares com seus bem cuidados jardins, suas escadas reluzentes e sua modesta atmosfera de ordem e decoro. Agradava-lhe ter pequenos vícios e extravagâncias, sentir-se antiburguês, esquisitão ou gênio, mas nunca fixava residência onde não existisse nenhuma classe da burguesia. Não se encontrava à vontade em meio de pessoas violentas e atrabiliárias, nem entre delinqüentes e criminosos, mas antes procurava sempre viver em meio à classe média, com cujos hábitos, normas e atmosfera estava bem familiarizado, embora pudesse ter contra elas revolta e oposição. Além disso, fora educado em meio à pequena burguesia e dela conservara um grande número de idéias e noções. Teoricamente nada tinha em contrário à prostituição, mas na prática não seria capaz de levar uma prostituta a sério ou considerá-la realmente sua igual. Aos criminosos políticos, aos revolucionários ou aos sedutores espirituais, podia amá-los como se fossem seus irmãos, ou respeitar o estado e a sociedade, mas não saberia como tratar um ladrão, um criminoso ou sádico, a não se demonstrando por eles uma compaixão eminentemente burguesa.
Dessa forma sempre reconhecia e afirmava com uma parte de seu ser, por pensamentos ou atos, o que com a outra parte negava e combatia. Criado num lar burguês e culto, de moral firme, nunca chegara a libertar parte de sua alma desses convencionalismos, mesmo depois de haver-se individualizado na medida do possível dentro da burguesia e haver-se divorciado do conteúdo dos ideais e das crenças burguesas.
O “burguês”, como um estado sempre presente da vida humana, não é outra coisa senão a tentativa de uma transigência, a tentativa de um equilibrado meio-termo entre os inumeráveis extremos e pares de opostos da conduta humana. Tomemos, por exemplo, qualquer dessas dualidades, como o santo e o libertino, e nossa comparação se esclarecerá em seguida. O homem tem a possibilidade de entregar-se por completo ao espiritual, à tentativa de aproximar-se de Deus, ao ideal de santidade. Também tem, por outro lado, a possibilidade de entregar-se inteiramente à vida dos instintos, aos anseios da carne, e dirigir seus esforços no sentido de satisfazer seus prazeres momentâneos. Um dos caminhos conduz à santidade, ao martírio do espírito, à entrega a Deus. O outro caminho conduz à libertinagem, ao martírio da carne, à entrega, à corrupção. O burguês tentará caminhar entre ambos, no meio do caminho. Nunca se entregará nem se abandonará à embriaguez ou ao ascetismo; nunca será mártir nem consentirá em sua destruição, mas, ao contrário, seu ideal não é a entrega, mas a conservação de seu eu, seu esforço não significa nem santidade nem libertinagem, o absoluto lhe é insuportável, quer certamente servir a Deus, mas também entregar-se ao êxtase, quer ser virtuoso, mas quer igualmente passar bem e viver comodamente sobre a terra. Em resumo, tenta plantar-se em meio aos dois extremos, numa zona temperada e vantajosa, sem grandes tempestades ou borrascas, e o consegue ainda que à custa daquela intensidade de vida e de sentimentos que uma existência extremada e sem reservas permite. Viver intensamente só se consegue à custa do eu. Mas o burguês não aprecia nada tanto quanto o seu eu (um eu na verdade rudimentarmente desenvolvido). À custa da intensidade consegue, pois, a subsistência e a segurança; em lugar da posse de Deus cultiva a tranqüilidade da consciência; em lugar dos ardores mortais, uma temperatura agradável. O burguês é, pois, segundo sua natureza, uma criatura de impulsos vitais muito débeis e angustiosos, temerosa de qualquer entrega de si mesma, fácil de governar. Por isso colocou em lugar do poder a maioria, em lugar da autoridade a lei, em lugar da responsabilidade as eleições.
E compreensível que esta débil e angustiada criatura, embora existindo em número tão grande, não consiga manter-se, que, de acordo com suas particularidades, não possa representar outro papel no mundo senão o de rebanho de cordeiro entre lobos erradios. Contudo, vemos que, em tempos de governos fortes, os burgueses se vêem oprimidos contra a parede, mas nunca sucumbem; na verdade às vezes parecem mesmo dominar o mundo. Como será possível? Nem o numeroso rebanho, nem a virtude, nem o senso comum, nem a organização serão suficientes para salvá-lo da destruição. Não há remédio no mundo que possa sustentar uma intensidade tão débil em sua origem. E, todavia, a burguesia vive, é forte e próspera. Porquê?
A resposta é a seguinte: Por causa dos lobos da estepe. Com efeito, a força vital da burguesia não se apóia de maneira alguma nas particularidades de seus membros normais, porém nas dos extraordinários e numerosos outsiders2 que, em conseqüência, a querem rodear com a vaga indecisão e a elasticidade de seus ideais. Convivem sempre na burguesia uma grande multidão de naturezas fortes e selvagens. Nosso Lobo da Estepe, Harry, é um exemplo característico. Ele que se desenvolveu muito mais do que se espera de um burguês, ele que conhece as delícias da meditação e também as sombrias alegrias do ódio e do ódio contra si mesmo, ele que despreza a lei, a virtude, o senso comum, é, no entanto, um prisioneiro forçado da burguesia e não pode escapar a ela. E assim em torno do núcleo da burguesia se sobrepõem amplas camadas de Humanidade, muitos milhares de vidas e inteligências, cada uma das quais surgida certamente da burguesia e disposta a uma vida sem reservas, mas que continua dependente da burguesia por sentimentos infantis e um tanto contagiada em sua debilidade pela intensidade vital; e embora pertencendo a ela, obrigadas e a seu serviço, pois à burguesia assenta perfeitamente o contrário da máxima do Grande: “Quem não está contra mim, está comigo.”
Se examinarmos agora a alma do Lobo da Estepe, veremos que ele é distinto do burguês por causa do alto desenvolvimento de sua individualidade, pois toda a individualização superior se orienta para o egoísmo e propende portanto ao aniquilamento. Vemos que tem em si um forte impulso tanto para o santo quanto para o libertino; no entanto, não pode tomar o impulso necessário para atingir o espaço livre e selvagem, por debilidade ou inércia, e permanece desterrado na difícil e maternal constelação da burguesia. Esta é sua situação no espaço do mundo e sua sujeição. A maior parte dos intelectuais e dos artistas pertence a esse tipo. Só os mais fortes entre eles ultrapassam a atmosfera da terra da burguesia e logram entrar no espaço cósmico; todos os demais se resignam ou selam pactos, pertencem a ela, reforçam-na e glorificam-na, pois em última instância têm de professar sua crença para viver. A vida desse infinito número de pessoas não atinge o trágico, mas apenas um infortúnio considerável e uma desventura, em cujo inferno seus talentos engendram e frutificam. Os poucos que se libertaram buscam sua recompensa no absoluto e sucumbem no esplendor. São os trágicos e seu número é pequeno. Mas os outros, os que permaneceram submissos, a cujo talento a burguesia concede com freqüência grandes homenagens, a estes se abre um terceiro reino, um mundo imaginário, mas soberano: o humor. Os inquietos lobos da estepe, a esses contínuos e terríveis pacientes, ao que está negado o apoio necessário para o trágico, para subir ao espaço sideral, que se sentem chamados para o absoluto e, no entanto, não podem nele viver; para esses, quando seu espírito se fez duro e elástico na dor, abre-se-lhes o caminho conciliante do humor. O humor é sempre um pouco burguês, embora o verdadeiro burguês seja incapaz de compreendê-lo. Em suas imaginárias esferas realiza-se o ideal intrínseco e multifacetado de todos os lobos da estepe: aqui é possível não apenas celebrar o santo e o libertino ao mesmo tempo e unir um pólo ao outro, mas também incluir os burgueses na mesma afirmação. É possível estar-se possuído por Deus e sustentar o pecador, e vice-versa, mas não é possível nem ao santo nem ao libertino (nem a nenhum outro absoluto) afirmar aquele meio-termo fraco e neutro que se chama burguês. Somente o humor, a magnífica descoberta dos que foram detidos em seu vôo para o mais alto, dos quase trágicos, dos infelizes superdotados, só o humor (talvez o produto mais genuíno e genial da Humanidade) atinge esse impossível e une todos os aspectos da existência humana nos raios de seu prisma. Viver no mundo como se não fosse o mundo, respeitar a lei e no entanto colocar-se acima dela, possuir uma coisa “como se não a possuísse”, renunciar como se não tratasse de uma renúncia, todas essas proposições favoritas e formuladas com freqüência, todas essas exigências de uma alta ciência da vida, somente pode realizá-las o humor.
E no caso do Lobo da Estepe, a quem não faltam faculdades e disposições para tanto, se lograsse, no labirinto de seu inferno, absorver e transpirar essa bebida mágica, então estaria salvo. Ainda lhe falta muito para isso, mas a possibilidade, a esperança existem. Quem o ama, quem se interessa por ele, pode desejar-lhe esta salvação. Ela iria, é verdade, mantê-lo preso ao mundo burguês, mas seu padecimento seria suportável e produtivo. Suas relações com o mundo burguês quer no amor quer no ódio perderiam seu sentimentalismo e sua sujeição a ele cessaria de atormentá-lo continuamente como um opróbio.
Para alcançar isto, ou para, afinal, ser capaz de tentar o salto no desconhecido, teria um lobo da estepe de defrontar-se algumas vezes consigo mesmo, olhar profundamente o caos de sua própria alma e chegar à plena consciência de si mesmo. Sua existência enigmática revelar-se-ia então para ele em toda sua invariabilidade e ser-lhe-ia impossível para sempre no futuro escapar do inferno de seus impulsos e refugiar-se em consolos filosóficos e sentimentais. Seria necessário que o homem e o lobo se conhecessem mutuamente sem falsas máscaras sentimentais, que se fitassem nos olhos em toda a sua nudez. Então explodiriam ou se separariam para sempre, de modo que não voltariam a existir lobos da estepe ou chegariam a bons termos à luz nascente do humor.
É possível que Harry tenha um dia esta última possibilidade. É possível que um dia aprenda a conhecer-se, seja porque receberá nas mãos um dos nossos espelhinhos, seja porque alcance o Imortal ou talvez encontre num dos nossos teatros mágicos aquilo de que necessita para libertar sua alma desgarrada. Mil possibilidades o esperam, seu destino as atrai irremediavelmente, pois todos esses solitários da burguesia vivem na atmosfera dessas mágicas possibilidades. Basta apenas um nada para que se produza a centelha.
E tudo isso é amplamente conhecido pelo Lobo da Estepe, ainda que seus olhos nunca venham a dar com este fragmento de sua biografia íntima. Ele suspeita e teme a possibilidade de um encontro consigo mesmo, e está cônscio da existência daquele espelho no qual tem uma necessidade tão marga de olhar-se e no qual teme mortalmente ver-se refletido.
Para terminar nosso estudo resta esclarecer ainda uma última ficção, um engano fundamental. Todas as interpretações, toda psicologia, todas as tentativas de tornar as coisas compreensíveis se fazem por meio de teorias, mitologias, de mentiras; e um autor honesto não deveria furtar-se, no fecho de uma exposição, a dissipar essas mentiras dentro possível. Se digo “acima” ou “abaixo”, isso já é uma afirmação, que exige um esclarecimento, pois só existem acima e abaixo no pensamento, na abstração. O mundo mesmo não conhece nenhum acima nem abaixo.
Da mesma maneira, para ser sucinto, o lobo da estepe também é uma ficção. Se o próprio Harry se sente como homem-lobo e se crê formado por dois seres inimigos e opostos, isso é puramente uma mitologia simplificadora. Harry não é nenhum homem-lobo, e se aceitamos a princípio sua mentira, inventada e acreditada por ele mesmo, e tentamos considerá-lo e explicá-lo dentro da realidade como um ser duplo, como um lobo da estepe, foi porque nos aproveitamos dela para sermos compreendidos mais facilmente, mentira essa cuja retificação deve ser tentada agora.
A divisão em lobo e homem, em impulso e espírito, mediante a qual Harry procura explicar seu destino, é uma grosseira simplificação, uma violentação do real em favor de uma explicação plausível porém errônea da desarmonia que este homem encontra em si e que lhe parece a fonte de seus não leves sofrimentos. Harry encontra em si um “homem”, ou seja, um mundo de pensamentos, de sensações, de cultura, de natureza domada e sublimada, e vê também, ao lado de tudo isto, um “lobo”, ou seja, um obscuro mundo de instintos, de selvagerismo e crueldade, de natureza bruta e insublimada. Apesar desta divisão, ao que tudo indica tão clara de seu ser em duas esferas, que são inimigas entre si, de quando em quando, já percebeu que o lobo e o homem, durante algum tempo, vivem reconciliados. Se Harry tentasse estabelecer em cada momento determinado de sua vida, em cada um de seus sentimentos, a parte correspondente neles ao homem e a parte que corresponde ao lobo, acabaria por encontrar-se num dilema, e toda a sua bela teoria do homem-lobo cairia por terra. Pois não há um único ser humano, nem mesmo o negro primitivo, nem mesmo os idiotas, convenientemente simples, que possa ser explicado como a soma de dois outros elementos principais; e explicar um homem tão complexo quanto Harry por meio da ingênua divisão em lobo e homem seria uma tentativa positivamente infantil. Harry compõe-se não de dois, mas de cem ou de mil seres. Sua vida não oscila (como a vida de cada um dos homens) simplesmente entre dois pólos, tais como o corpo e o espírito, o santo e o libertino, mas entre mil, entre inumeráveis pólos.
Não devemos surpreender-nos pelo fato de que mesmo um homem tão inteligente e educado quanto Harry possa tomar-se por um lobo da estepe e reduzir a rica e complexa imagem de sua vida a uma fórmula tão simples, tão rudimentar e primitiva. O homem não é capaz de pensar em alta escala, e mesmo o mais espiritual e altamente intelectualizado pode contemplar o mundo e a si próprio através das lentes de fórmulas enganosas e simplistas – especialmente a si próprio! Pois parece ser uma necessidade inata e imperativa de todos os homens imaginarem o próprio ser como uma unidade. E apesar de essa ilusão sofrer com freqüência graves contratempos e terríveis choques, ela sempre se recompõe. O juiz que se senta defronte ao criminoso e o fita no rosto, e por um instante reconhece todas as emoções, potencialidades e possibilidades do assassino em sua própria alma de juiz e ouve a voz do assassino como sendo a sua, já no momento seguinte volta a ser uno e indivisível como juiz, volta a encerrar-se na envoltura do seu eu quimérico e cumpre seu dever e condena o assassino à morte. E se em algumas almas humanas, singularmente dotadas e de percepção sensível, se levanta a suspeita de sua composição múltipla, e, como ocorre aos gênios, rompem a ilusão da unidade personalística e percebem que o ser se compõe de uma pluralidade de seres como um feixe de eus, e chegam a exprimir essa idéia, então imediatamente a maioria as prende, chama a ciência em seu auxílio, diagnostica esquizofrenia e protege a Humanidade para que não ouça um grito de verdade dos lábios desses infelizes. Então, para que perder aqui palavras, por que expressar coisas que todos aqueles que pensam conhecem por si mesmos, quando sua simples enunciação é uma nota de mau gosto? Assim, pois, se um homem se aventura a converter numa dualidade a pretendida unidade do eu, se não é um gênio, é em todo caso uma rara e interessante exceção. Mas na realidade não há nenhum eu, nem mesmo no mais simples, não há uma unidade, mas um mundo plural, um pequeno firmamento, um caos de formas, de matizes, de situações, de heranças e possibilidades. Cada indivíduo isolado vive sujeito a considerar esse caos como uma unidade e fala de seu eu como se fora um ente simples, bem formado, claramente definido; e a todos os homens, mesmo aos mais eminentes, esse rude engano parece como uma necessidade, uma exigência da vida, como o respirar e o comer.
O equívoco reside numa falsa analogia. Todo homem é uno quanto ao corpo, mas não quanto à alma. Também na literatura, mesmo na mais refinada, encontramos este conceito habitual em personagens aparentemente unas, aparentemente uniformes. No teatro de hoje, o que mais aprecia a gente do ofício, os conhecedores, é o drama, e com razão, pois oferece (ou oferecia) as maiores possibilidades para a representação do eu como uma pluralidade, se isto não se opõe a brutal impressão de unidade que nos dá cada pessoa isolada do drama, ao levar encerrada, sem resistência, essa pluralidade num corpo simples, uniforme e isolado. Também apreciam muito a ingênua estética do chamado drama de caráter, no qual cada figura se apresenta como uma unidade muito característica e isolada. Só de longe e pouco a pouco começa a despertar em alguns a suspeita de que tudo isto não passa de uma razoável estética superficial, de que nos equivocaremos se aplicarmos aos nossos grandes dramaturgos a magnífica idéia de beleza dos antigos, pois esta não é congênita a nós, mas simplesmente intuída, e é nela, na fonte comum dos corpos visíveis, que se encontra exatamente a ficção do ego, da personalidade. Nas obras da Índia antiga esta concepção é completamente desconhecida, os heróis da epopéia índica não são pessoas, mas aglomerados de pessoas, conjuntos de reencarnações. E em nosso mundo moderno há obras em que, por trás do véu do jogo das pessoas e caracteres, tentou-se apresentar uma pluralidade de almas, não de todo inconsciente para o autor. Quem queira comprovar isto deve decidir-se a considerar de uma vez as figuras de uma obra semelhante, não como seres individuais, mas como pares, como facetas, como aspectos diversos de uma suprema unidade (que para mim é a alma do poeta). Quem examinar deste modo o Fausto, tanto o Fausto, Mefistófeles, Wagner e todos os demais significarão para ele a unidade, uma superpessoa, e só nesta suprema unidade e não nas figuras isoladas estará refletido algo da verdadeira essência da alma. Quando fausto diz a frase que ficou célebre entre os professores e admirada com terror pelos filisteus: “Duas almas, ai, moram no meu peito!” esqueceu-se de Mefistófeles e de toda uma multidão de outras almas que também se abrigam em seu peito. Nosso Lobo da Estepe crê levar também em seu peito duas almas (lobo e homem) e por isto sente o peito demasiadamente oprimido e estreito. O peito, o corpo, é sempre uno, mas as almas que nele residem não são nem duas, nem cinco, mas incontáveis, o homem é um bulbo formado por cem folhas, um tecido urdido com muitos fios. Os antigos asiáticos sabiam disto muito bem, e encontram no ioga búdico uma técnica precisa para descobrir a ilusão da personalidade. Divertido e multíplice é o jogo da Humanidade: a ilusão que levou milhares de anos para ser descoberta pelos hindus é a mesma ilusão que aos ocidentais custou tanto trabalho custodiar e fortalecer.
Se observarmos o Lobo da Estepe a partir deste ponto de vista, veremos claramente porque sofre tanto sob a sua ridícula dualidade. Crê, como Fausto, que duas almas são demais pra um peito só e podem arrebentar com ele. Mas, ao contrário, são demasiado poucas, e Harry violenta terrivelmente sua pobre alma se busca compreendê-la numa imagem tão primitiva. Harry, embora seja um homem grandemente instruído, procede talvez como um selvagem, que não sabe contar além de dois. Chama a uma parte de si mesmo de homem, à outra, de lobo, e com isso acredita haver chegado á meta e esgotado o assunto. No “homem” encerra tudo o que há de espiritual, de sublime ou culto que encontra em si, e no “lobo” tudo o que há de instintivo, de selvagem e caótico. Mas as coisas não se passam na vida de maneira tão simples como em nosso pensamento, nem tão rude como em nosso pobre idioma de idiotas, e Harry se engana duplamente ao empregar este método tacanho do lobo. Harry considera, o que é de temer-se, todas as divisões de sua alma como parte do “homem”, muitas das quais já deixaram de ser homem, e qualifica partes de seu ser como lobo, partes que há muito já estão além do lobo.
Como todos os homens, Harry crê saber muito bem o que é o homem, e não sabe absolutamente nada, embora o suspeite algumas vezes em sonho ou em outros estados anímicos não sujeitos a controle. Quem dera não esquecesse esses pressentimentos, mas se apropriasse deles tanto quanto possível! O homem não é uma forma fixa e duradoura (tal era o ideal dos antigos, apesar do pensamento em contrário de alguns luminares da época); é antes um ensaio e uma transição, não é outra coisa senão a estreita e perigosa ponte entre a Natureza e o Espírito. Para o espírito, para Deus, ele é impulsionado por sua vocação mais íntima. para a natureza, para a mãe, é atraído pelo mais íntimo desejo. Sua vida oscila vacilando angustiosamente entre ambos os poderes. O que se compreende comumente pela palavra “homem” é sempre uma estipulação efêmera e burguesa. Certos impulsos mais crus estão afastados e proibido nessa convenção; um grau de consciência e de cultura humana são reclamados à besta; uma pequena parcela de espírito não é somente permitida, como também encorajada. O homem desta convenção, como todos os outros ideais burgueses, é uma conciliação, um intento tímido, de ingênua astúcia com o intuito de enganar tanto à perversa mãe Natureza primitiva quanto o incômodo primitivo pai Espírito de suas enérgicas exigências e para viver na zona temperada entre eles. É por isso que a média das pessoas permite e tolera aquilo que denomina “personalidade”, mas ao mesmo tempo entrega a personalidade àquele Moloch chamado “Estado” e intriga continuamente um com o outro. Assim o burguês queima hoje por herege e enforca por criminoso aquele ao qual amanhã levantará estátuas.
Que o “homem” não é alguma coisa já criada, mas apenas uma exigência do espírito, uma possibilidade longínqua, tão desejada quanto temida, e que o caminho a que isto conduz só vai sendo percorrido em pequenos impulsos e debaixo de terríveis tormentos e sonhos, precisamente por aquelas raras individualidades, para as quais hoje se prepara o patíbulo e amanhã o monumento – é a suspeita que vive também no Lobo da Estepe. Porém, o que ele para si designa como “homem”, em contraposição ao seu “lobo”, não é, em grande parte, senão aquele homem medíocre do convencionalismo burguês. O caminho para o verdadeiro homem, o caminho para os imortais, Harry adivinha-o perfeitamente e percorre-o também aqui e ali com timidez, muito lentamente, pagando este avanço com graves tormentos e com seu doloroso isolamento. mas, proporcionar-se, aspirar àquela suprema exigência, àquela encarnação pura e buscada pelo espírito, andar o único caminho estreito para a imortalidade, isto receia-o no mais profundo de sua alma. tem perfeita consciência de que isto conduz a tormentos ainda maiores, à proscrição, à renúncia de tudo, talvez ao cadafalso; e, apesar de saber que no fim deste caminho a imortalidade sorri sedutora, não está disposto a padecer todos estes sofrimentos, a morrer todas estas mortes. Tendo ainda mais consciência do fim da encarnação do que os burgueses, fecha, todavia, os olhos e faz por ignorar que o apego desesperado ao próprio eu, a desesperada ânsia de viver, são o caminho mais seguro para a morte eterna, ao passo que o saber morrer, rasgar o véu do mistério, ir procurando eternamente mutações em si mesmo, conduz à imortalidade. Quando adora os seus favoritos entre os imortais, Mozart, por exemplo, nunca o faz, afinal, senão com olhos de burguês, e pretende explicar doutamente a perfeição de Mozart apenas pelos seus altos dotes de músico, e não pela grandeza de sua abnegação, paciência no sofrimento e independência perante os ideais da burguesia, pela sua resignação naquele extremo isolamento, semelhante ao do horto de Getsêmani, que em torno do que sofre e está em vias de reencarnação rarifica toda a atmosfera burguesa até convertê-la em gelado éter cósmico.
Mas, enfim, o nosso Lobo da Estepe descobriu dentro de si ao menos a duplicidade fáustica; conseguiu determinar que à unidade de seu corpo corresponde uma unidade espiritual, mas que, no melhor dos casos, apenas se encontra em caminho, com uma larga peregrinação à frente, para o ideal dessa harmonia. Desejaria vencer dentro de si o lobo e viver inteiramente como homem, ou então, renunciar ao homem e viver ao menos como lobo uma vida uniforme, sem desvios. Provavelmente nunca observou com atenção um lobo autêntico; então veria, talvez, que nem mesmo os animais possuem a anuidade da alma, que também neles, atrás da bela e austera forma do corpo, vive uma multiplicidade de desejos e de estados; que também o lobo tem abismos no seu interior e também sofre. Não! Com a volta à Natureza o homem vai sempre por um falso caminho, cheio de sofrimentos e sem esperanças. Harry não pode tornar a converter-se inteiramente em lobo, e se tal acontecesse veria que nem mesmo o lobo é simples e originário, mas alguma coisa já muito complexa. Também o lobo tem duas e mais de duas almas dentro do peito, e quem desejar ser um lobo incorre na mesma ignorância do homem da canção: “Feliz quem voltasse a ser criança!” O homem simpático, mas sentimental, que entoa a canção do menino ditoso, desejaria também voltar à Natureza, à inocência, ao princípio, mas esqueceu que nem mesmo as crianças são felizes, e sim suscetíveis de muitos conflitos, de muitas desarmonias, de todos os sofrimentos.
Para trás, não conduz a nenhum caminho, nem para o lobo nem para a criança. No princípio das coisas não há simplicidade nem inocência; tudo o que foi criado até o que parece mais simples, é já culpável, já complexo, foi lançado ao sujo torvelinho do desenvolvimento e já não pode, não poderá nunca mais, nadar contra a corrente. O caminho para a inocência, para o incriado, para Deus, não se dirige para trás mas sim para diante; Não para o lobo ou a criança, mas cada vez mais para a culpa, cada vez mais fundamente dentro da encarnação humana. Nem mesmo com o suicídio, pobre Lobo da Estepe, te livrarás realmente das dificuldades; tens de percorrer o caminho mais largo, mais penoso e mais difícil da humana encarnação; freqüentemente terás de multiplicar a tua multiplicidade, complicar ainda mais a tua complexidade. Em vez de reduzir o teu mundo, de simplificar a tua alma, terás de recolher cada vez mais mundo, de recolher no futuro o mundo inteiro na tua alma dolorosamente dilatada, para chegar talvez algum dia ao fim, ao descanso. O mesmo caminho foi percorrido por Buda e todos os grandes homens, uns conscientes, outros inconscientemente, na medida em que a fortuna favorecia a sua busca. Nascimento significa desunião do todo, limitação, afastamento de Deus, penosa reencarnação. Volta ao todo, anulação da dolorosa individualidade, chegar a ser Deus, quer dizer: ter dilatado a alma de tal forma que se torne possível voltar a conter novamente o todo.
Não se trata aqui do homem conhecido das escolas, da economia política ou da estatística, nem do homem que aos milhões anda pela rua e não tem mais importância do que a areia ou a espuma dos mares: pouco adiantam alguns milhões a mais ou a menos; são material e nada mais. Não, nós falamos aqui do homem no sentido elevado do termo, do largo caminho da encarnação humana, do homem verdadeiramente real, dos imortais. O gênio não é tão raro como em geral nos parece, nem tão freqüente como pretendem as histórias literárias, a história universal e até mesmo os jornais. O Lobo da Estepe, Harry, segundo nossa opinião, seria gênio bastante para intentar a aventura da encarnação humana, sem necessidade de trazer para confrontação, lamentavelmente, a cada dificuldade, o seu estúpido lobo da estepe.
É tão estranho e entristecedor que homens de tais possibilidades surjam como lobos da estepe e com “duas almas, ai!” e que mostrem tanta afeição covarde ao burguês. Um homem capaz de compreender Buda, um homem que tem noção dos céus e dos abismos da natureza humana, não deveria viver num meio em que domina o senso comum, a democracia e a educação burguesa. Só por covardia continua a viver nele, e quando suas dimensões o oprimem, quando a estreita cela do burguês se torna demasiado apertada, ele atribui tudo isto ao “lobo” e não que aperceber-se de que às vezes o lobo é a sua melhor parte. Tudo o que há de feroz dentro de si ele o atribui ao lobo e o tem por mau, perigoso e terror dos burgueses; mas ele que, no entanto, se acredita um artista e supõe ter sensibilidade, não é capaz de ver que fora do lobo, atrás do lobo, vivem no seu interior muitas outras coisas: que nem tudo o que morde é lobo; que dentro de si habitam também a raposa, o dragão, o tigre, o macaco e a ave-do-paraíso, e que todo este mundo é um éden cheio de milhares de seres, formosos e terríveis, grandes e pequenos, fortes e delicados, mundo asfixiado e cercado pelo mito do lobo – tanto como o verdadeiro homem que nele há é asfixiado e preso apenas pela sua aparência de homem, pelo burguês.
Imagine-se num jardim de cem espécies de árvores, com mil variedades de flores, com cem espécies de frutas e outros tantos gêneros de ervas. Pois bem: se o jardineiro que cuida deste jardim não conhece outra diferenciação botânica além do “joio” e do “trigo”, então não saberá que fazer com nove décimas partes de seu jardim, arrancará as flores mais encantadoras, cortará as árvores mais nobres, ou pelo menos ter-lhes-á ódio e as olhará com maus olhos. Assim faz o Lobo da Estepe com as mil flores de sua alma. O que não está compreendido na designação pura e simples de “lobo” ou de “homem nem sequer merece sua atenção. E quantas qualidades ele empresta ao homem! Tudo o que é covarde, símio, estúpido, mesquinho, desde que não seja muito, diretamente lupino, ele atribui ao “homem”, assim como atribui ao “lobo” tudo o que é forte e nobre, só porque não conseguiu ainda dominá-lo.
Despedimo-nos de Harry. Deixamos que continue o seu caminho. Se já estivesse com os imortais, se já tivesse chegado lá onde a sua penosa marcha parece querer levá-lo, como olharia assombrado este vaivém, este feroz e irresoluto ziguezague da sua rota, como sorriria a este lobo da estepe, animando-o, censurando-o, com compaixão e complacência!
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Quando os assassinos do Rei estão a solta, mil magos surgem na Terra...